quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O ADVENTO



Gosto da palavra advento. Ela possui fabulosas imbricações, que sugerem estradas vicinais, estalagens no meio do caminho... meio do caminho que tem pedras, mas também outros atalhos.
Gosto de pensar nas implicações da palavra advento, no seu significado à margem, no que diz, sem dizer, nas entrelinhas. Gosto das linhas bifurcadas de tantos roteiros e vias. Gosto de caminhos, sendas, passagens. Gosto de frestas, da fímbria dos rios e mares, das beiradas dos lugares, das orlas desguarnecidas, pois nada jaz desguarnecido.
O advento propõe uma chegada. Propõe uma estrada pela qual se chega de carro ou de biga, em liteiras ou camelos, ou num simples burrico, sem guarnição, sem pedrarias, sem cela, sem coisa alguma.
Gostaria de ver chegar esse desconhecido visitante, da margem da minha vida: assistir sua chegada, numa carruagem ou a pé. Afinal, que importam os meios senão a chegada em si? Que importa o veículo senão a quem conduz?
Gosto da palavra advento. E das imbricações do caminho, da ligação profunda que há entre todos e nenhum lugar. Gosto do gosto da espera, e aprendo, sem sair da minha margem, que o visitante é capaz de chegar por todas elas, em cada orla onde houver alguém que espera, porque, mais que o lugar e os atalhos, mais que o tempo e as estradas, em alguma estância dentro de nós Esse Visitante já é chegado e faz pouso em nossa mais recôndita estalagem.

Boas Festas! Feliz 2010, com muita saúde!

Júlio Polidoro

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

ESPÓLIO


Leguei-me o espólio das coisas necessárias.
Há textos que escrevi, releio e não entendo. Então não há motivo para herdá-los, e rasgo cada fio das palavras.
Eu vejo essa arca abarrotada, tão cheia dos cacos que juntei: frações de tecido, a mecha do primeiro corte. Os cortes que jamais cicatrizaram.
Revejo o pião e o barbante, que antes o laçava, revejo as mãozinhas que o lançavam: com eles a vida rodopiava... e gira até hoje, na calçada.
Leguei-me um espólio de fantasmas: pedaços do que fui nestes retalhos, chaveiros, figurinhas e retratos. E estes, mesmo estes, apagados. O “quem” que neles vejo é só miragem do oásis que até hoje é imagem daquele que, inda sendo, é em parte, das partes que juntei, mas separadas, não expressam o todo, não são nada.
Leguei-me o real e o imaginário, e guardo quem não sou do meu passado, e guardarei depois, do inanimado, lembranças tantas, tão desnecessárias.

AQUELE QUE É EM MIM


A paisagem é junção de antagonismos. Desencontro de unidades. Para, depois do oceano, refletir-se absoluta... no vazio.
A paisagem é repouso; a paisagem é ação. É ausência e presença. Onde Eu Sou o que é e o que não é.
A paisagem és tu, que pensas ser e, no entanto, Eu Sou tu.
A paisagem é silêncio. Tu és a balburdia do silêncio, o lábio que estala a palavra inaudível. Palavra inaudível que estala na paisagem.
A paisagem é desejo. A paisagem é objeto do desejo. Pó. Pó o objeto. Pó o desejo. Pó o que imaginas ser.
Minha palavra está além do pó. É o selo gravado no teu coração. É o selo.
Minha palavra é. Eu Sou além da porta e Sou a chave. Eu Sou além da chave e Sou a porta.
Eu Sou além do além e aqui estou.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Semente



Eu tenho sido indiferente a essa insignificante semente... e regado o roseiral alheio com minhas lágrimas...

Eu tenho ignorado essa semente por achar que outros a regarão, assim como tenho regado seus jardins...

Mas a semente continua ali... quase esquecida... entre viva e morta... cujas únicas lágrimas que a salvam da secura iminente vêm dos olhos de Deus, através da chuva...

Pois as pessoas estão acostumadas às rosas e seu inebriante perfume, muitas vezes esquecendo que tudo começou na semente...

Deus! agora percebo essa semente... e já abri na gleba um fulcro onde a coloquei... e a tenho regado, ainda que de forma indisciplinada (ainda não me convenci totalmente de que cabe a cada um regar seu próprio jardim e às vezes quero fazer isso por outrem...)...

Mas eu creio que todos os jardins se encontram um dia... formando um sistema harmonioso e sereno...

Espero que ainda tenha tempo de regar minha semente, dar-lhe o devido valor e merecer que o meu próprio roseiral floresça com a chuva dos meus olhos...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Quase posso ouvir o rocio...



Quase posso ouvir o rocio... caindo silencioso, sobre territórios tão amplos, tão vastos, tão ilimitados... e há flores e vegetais que nunca vi... nestas planícies que conheço tão pouco... ouço... a vida pulsando! Oásis mais reais que a imaginação repousam, tranqüilos, e convidam ao repasto... Frutas que jamais provei se ofertam como gueixas para o amado...
O tempo inexiste... ou se mistura ao contexto... então o contexto É, fora do tempo e do espaço, pois mesmo o espaço não cabe em tal contexto... vastas paisagens, verdes campos, álamos, bosques... seres que parecem conhecidos, mas que pertencem a outra linhagem... terras sem fim, espaços sem trégua, alma, querubim, origem, meio e destino... ao qual retornamos, libertos da forma...
Começo a ouvir teus sussurros, minha terra! Começo a ouvir teu chamado! Por isso sonho acordado e desperto no teu chão, ó terra ancestral! Começo a ouvir teus sussurros, começo a ouvir tua música, começo a sentir tua brisa, o rociar das manhãs, o sol que se descortina do outro lado de mim...
Começo a sentir-te, Presença, além de qualquer recompensa, além do sim e do não, fora de todo limite, acima de toda razão...
Quase posso ouvir o rocio sobre essas flores sem nome, sobre essas fontes sem água, antes da nomeação... não há, nesta paisagem, que se possa nomear, sequer um grão de palavra, pois as palavras não podem traduzir o que não são!
Começo a ouvir teu chamado, minha terra! Tuas flâmulas na alma e tua voz no coração!

domingo, 23 de agosto de 2009

Do livro Outro Sol

meu coração um ancião habita

e aponta longe o corpo que vivi



o corpo que vivi perante a porta

perante a porta que jamais abri



seria após o Éden, seus jardins?

depois viria o que não tenho em mim?

ou portas e mais portas para abrir?

sem chaves, fechaduras, sem o si?



não há que erguer o véu, buscar resposta

nem há o corpo longe que perdi -

mas onde a porta por detrás da porta?

domingo, 16 de agosto de 2009

Tu


O amor desalinhou-me a alma,
tornou-me bufão das gentes:
eu caminho em círculos
como alguém que perdeu sua sombra.

Os meus olhos são teus olhos
os meus passos são teus passos
o meu nome é teu nome.
Se pergunto ou se respondo
a pergunta e a resposta
são teu nome.
Se juro esquecimento
ergue-se tua lembrança
e na tua lembrança
a mim me esqueço.

As pessoas me chamam por teu nome
e a elas respondo, chamando por ti.
Todo rosto é teu rosto, toda
pedra recorda tuas formas.
Te vejo no musgo e na nuvem
e minha voz, quando ora,
proclama o teu nome.

Eu vago como quem não se sabe
pois me confundo contigo:
eu sou tu, tu me és.

Ascende-me calcinado, ó alma,
às chamas do puro amor!

O pastor de lacunas


Desde a invenção do tempo
és pastor de lacunas.
Mentor dos lapsos,
tua verve o esquecimento.
Cervo na entrelinha, persegues
tua gazela, essa amante
que foge pelas frestas.

Tens tatuado no peito
o referendo das orlas,
os espaços submersos,
o reverso do avesso.

Buscas tua gazela,
aquela que foge do laço
quando perdes o novelo.

Assim tem sido o tempo
e o amor, que foge por entre os dedos:
esse respingo de água
que não mata a sede
e te leva de volta, sempre, ao começo.

so beautiful



Estando certo ou errado
Não há frase que alcance
Como um oceano precisa da areia
Ou um velho sapato que sirva
E se o mundo inteiro fosse perfeito
Eu apenas iria querer ver suas cicatrizes
Você sabe que eles podem ter seu universo
Nós estaremos na terra projetando estrelas

E querida, você sabe
Você faz eu me sentir muito bonito
Não há outro lugar no mundo onde eu queira estar
Você faz eu me sentir muito bonito

Se eu estou para cima ou para baixo
Não há multidão para agradar
Eu sou como uma fé sem uma cláusula para se acreditar
E se o mundo inteiro estivesse sorrindo
Eu apenas iria querer ver seu olhar emburrado
Você sabe que eles podem sair navegando em pores do sol
Nós estaremos aqui abandonados na terra
Apenas felizes por termos sido encontrados

Você faz eu me sentir muito bonito
Não há outro lugar no mundo onde eu queira estar
Você faz eu me sentir muito bonito

Eu perdi minhas ilusões
Eu me afoguei em suas palavras
Eu deixei minhas confusões para um mundo cínico
Eu estou me jogando em coisas que eu não entendo
Descobrindo a felicidade segurando sua mão

Você é...Muito bonita

Sim querida você sabe!
Que você faz eu me sentir muito bonito

sábado, 15 de agosto de 2009

as coisas indizíveis


Quando, no círculo celeste, Deus instruiu-me para o culto da palavra, detive-me nas coisas indizíveis e Ele disse: - esquece as coisas indizíveis, elas são para os que vão nutrir-se dos dois mundos, são para aqueles que não terão pátria nem destino... as coisas indizíveis são a porta, mas também a perdição... Cultua as palavras ditas, porque as interditas te perderão... mas eu já havia visto as coisas indizíveis, ó Deus, e as trouxe comigo... nesse alforje de células que bombeia meu sangue, nesse “comboio de corda” que me relata o que não sei dizer, nem definir... serei mais um perdido, pai, nestes atalhos de desencontro, pois as coisas indizíveis se inscreveram para sempre no meu coração!

sábado, 25 de julho de 2009

Sete véus


Antevejo estrelas por detrás do sol
por detrás do céu estrelas antevejo
como quando era tal antes de ser
como quando antes fez-se como tal.

Como quando antes para ser
não houvesse antes, nem depois.
Como se depois o sempre fosse,
como fosse sempre o depois,
o futuro, o ontem, o que é.

Como é agora o que foi
e será depois o que é agora,
o futuro, a hora que virá:

antevejo céus que inda serão
como céus amava porque eram
e que amo agora, porque são.

O que permanece é consciência


Em meu pensamento organizo a lembrança de quem sou, de quem fui e de quem ainda posso ser, enquanto os pés deslizam sobre a areia. Sobre a areia os pés caminham sem saber que o pensamento busca na lembrança o próprio ser.
Mas meus pés são parte de quem sou e meu pensamento só se faz porque o corpo assenta sobre eles; porque ossos, pele, carne, vísceras cumprem sem pensar o seu papel. E meus olhos, feitos para ver, e meus ouvidos, feitos para ouvir, e a boca, afeita ao falar, vêem, ouvem e falam somente o necessário para manter o corpo equilibrado e a recordação florir o pensamento.
Uma parte em mim é toda ação, outra parte assiste ao movimento, sem parar, contudo, totalmente.
O que permanece é consciência...

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Além do gesto


O teu vizinho acena com os olhos
porque as mãos, no gesto previsíveis,
apenas cumprem ritos repetidos.

Entanto os olhos, estes inda movem
a mão que acena dentro da pupila
buscando aldravas, portas no escuro.

Buscando portas, como aos outros olhos,
a tua mão responde, ato contínuo:
também tateia dentro da pupila.

Assim o ato externo, formalista,
oculta, interno, outro, verdadeiro,
que comunica algo mais profundo.

Seja no quarto, sala, ou banheiro,
horas ou dias após o cumprimento,
nenhum dos dois se lembra do aceno

porém nos olhos, dentro da pupila,
prossegue o gesto das mãos se movendo,
buscando aldravas, portas no escuro.

O que nos move


O que nos move é necessidade, é esperança em coisas impossíveis. É creditar verdade ao verossímil. É sustentar-se fé na voz silente, é ir além do próprio pensamento, é achar água plena no deserto, é não ter fome mesmo que faminto.
O que nos move, além do próprio sangue, é sua fonte, mais que o coração, é imergir na própria identidade, é transmutar-se, para ser, então.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

De alma para alma


para a amiga Valéria Nogueira

namastê, as salam aleikum, a paz esteja contigo
no brilho dos teus olhos
no estribilho das pupilas
que, estrelas, são reflexo da alma
que canta de saudade
do não lugar
no oceano sem mar
que une toda gota numa só

terça-feira, 7 de julho de 2009

discurso para os que dormem acordados

MAIS MAGRITTE

Poemas

MAIÊUTICA KRISHNAMURTIANA

Penso o arremesso de uma flecha.
Desde o começo. Meço
o pensamento do arqueiro. A meta.
O arco que a amolda, em linha reta,
a mão que a dirige
e a mão que a solta.
Penso a paisagem que há à volta:
nada importa,
senão para quem mira, o alvo que persegue.

Sumiram paisagem, céu, escolta.
Tornaram-se um só o alvo e o arqueiro,
a mão, o arco e a flecha.

Não há quem observa, ou coisa observada:
o universo em torno é um nada
porque somente existe no instante
um alvo, um arremesso, uma flecha,
a porta que se fecha e se abre
a outros partos...

EMMANUEL

Aos irmãos do caminho me uno
por atalhos outros.
Estamos indelevelmente ligados
até o fim dos tempos.

Léguas adiante das eras,
além da verbena e seu aroma,
somos.

E nos reunimos sem nos reunir,
e nossos passos se movem nos passos
de um único amigo, em sua singularidade.
E a singularidade do amigo
se move em nós.
Simplesmente porque não há passos,
não há espaço que nos comporte
se o somos além de si,
como um feixe que não se cabe.

Somos a saga dos incontinentes,
a irmandade do sol,
colhedores de estrelas, astros nós próprios,
na implosão do encontro,
evento sem tradução, junção do ômega com o alfa.

Somos a paz presente, sem atravessadores,
o nicho do Um em todos,
a perfeita transparência.

Somos espelho, espelho somos,
polidores do sonho mais que real.

Me uno a meus irmãos
por mais pareça afastado
e ouço sua música
no meu coração.

O SABOR DAS COISAS

Para José Polidoro


Experimento o sabor das coisas.
Fruta ora fel,
outras muito doce.

E apreendo ecos de certeza
n'Aquele que criou, ao paladar,
o gosto das coisas verdadeiras.


INEFÁVEL

Daqui despeço as palavras.
Não há nada a dizer. Ou tudo.
Se abro minha boca fico mudo:
é como descrever o mundo a um cego.

Por mais caprichos tenha, e esmero
na descrição daquilo que não vejo,
por mais que meu capricho vire zelo
para expressar, sem ver, tudo que sinto,
eu digo a verdade assim, mentindo,
pois como hei de dizer o indizível?