domingo, 26 de outubro de 2008

Escuta a flauta de bambu...

Escuta a flauta de bambu, como se queixa,
Lamentando seu desterro:
"Desde que me separaram de minha raiz,
Minhas notas queixosas arrancam lágrimas de homens e mulheres.
Meu peito se rompe, lutando para libertar meus suspiros,
E expressar os acessos de saudade de meu lugar.
Aquele que mora longe de sua casa
Está sempre ansiando pelo dia em que há de voltar.
Ouve-se meu lamento por toda a gente,
Em harmonia com os que se alegram e os que choram.
Cada um interpreta minhas notas de acordo com seus sentimentos,
Mas ninguém penetra os segredos de meu coração.
Meus segredos não destoam de minhas notas queixosas,
E, no entanto não se manifestam ao olho e ao ouvido sensual.
Nenhum véu esconde o corpo da alma, nem a alma do corpo,
E, no entanto homem algum jamais viu uma alma”
O lamento da flauta é fogo, e não puro ar.
Que aquele que carece desse fogo seja tido como morto!
É o fogo do amor que inspira a flauta,
E o amor que fermenta o vinho.
A flauta é confidente dos amantes infelizes;
Sim, sua melodia desnuda meus segredos mais íntimos.
Quem viu veneno e antídoto como a flauta?
Quem viu consolador gentil como a flauta?
A flauta conta a história do caminho, manchado de sangue, do amor,
Conta a história das penas de amor de Majnun.
Ninguém sabe desses sentimentos senão aquele que está louco,
Como um ouvido que se inclina aos sussurros da língua.
De pena, meus dias são trabalho e dor,
Meus dias passam de mãos dadas com a angústia.
E, no entanto, se meus dias se esvaem assim, não importa,
Faz tua vontade, ó Puro Incomparável!
Mas quem não é peixe logo se cansa da água;
E àqueles a quem falta o pão de cada dia, o dia parece muito longo;
Assim o "Verde" não compreende o estado do "Maduro";
Portanto cabe a mim abreviar meu discurso.
Levanta-te, ó filho! Rompe tuas cadeias e se livre!
Quanto tempo serás cativo da prata e do ouro?
Embora despejes o oceano em teu cântaro,
Este não pode conter mais que a provisão de um dia.
O cântaro do desejo do ávido nunca se enche,
A ostra não se enche de pérolas até a saciedade;
Somente aquele cuja veste foi rasgada pela violência do amor
Está inteiramente puro, livre de avidez e de pecado.
A ti entoamos louvores, ó Amor, doce loucura!
Tu que curas todas as nossas enfermidades!
Que és médico de nosso orgulho e presunção!
Tu que és nosso Platão e nosso Galeno!
O amor eleva aos céus nossos corpos terrenos,
E faz até os montes dançarem de alegria!
Ó amante, foi o amor que deu vida ao Monte Sinai,
Quando "o monte estremeceu e Moisés perdeu os sentidos".
Se meu Amado apenas me tocasse com seus lábios,
Também eu, como a flauta, romperia em melodias.
Mas aquele que se aparta dos que falam sua língua,
Ainda que tenha cem vozes, é forçosamente mudo.
Depois que a rosa perde a cor e o jardim fenece,
Não se ouve mais a canção do rouxinol.
O Amado é tudo em tudo, o amante, apenas seu véu;
Só o Amado é que vive, o amante é coisa morta.
Quando o amante não sente mais as esporas do Amor,
Ele é como um pássaro que perdeu as asas.
Ai! Como posso manter os sentidos,
Quando o Amado não mostra a luz de Seu semblante?
O Amor quer ver seu segredo revelado,
Pois se o espelho não reflete, de que servirá?
Sabes por que teu espelho não reflete?
Porque a ferrugem não foi retirada de sua face.
Fosse ele purificado de toda ferrugem e mácula,
Refletiria o brilho do Sol de Deus.
Ó amigos, ouvi agora esta narrativa,
Que expõe a própria essência de minha situação.

RUMI

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Outro sol?

As coisas que elegi para a leveza repousam noutras terras que há em mim... Ali repousam elas, tão guardadas, que todos os atalhos esqueci...
Há brumas no meu sentimento, e tento, pelo pensamento, pensar o que era pra sentir...
Misturo, em meu esquecimento, a eternidade com o momento e colho o que não plantei... Estão em outro terreno sementes que há muito espalhei... Vingaram protegidas pelo tempo, floriram para outros olhos, as árvores que um dia semeei... Esperam por aquele as espera, oculto como luz em meio às trevas, o facho de esperança que ocultei...
Espera, ele assim, tão bem guardado, que fora, esse eu, desesperado, nem sabe que outro existe, além de si...
Espera pelo dia que não chega, na noite permanente que acendi, aquele que, em mim, nem sabe-se...

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Mais que isso

Há muito viajas pela roda de samsara. Viste flores murchas, vencidas estações. Viste folhas secas, no outono debruçadas. Disseste, no colo do tufão: “eu volto”! Mas danças desde o esquecimento.
Cruzaste o tempo corroído com velhas sandálias. Vê o teu mirrado manto, quão precário!
Vê, em tuas mãos, o pó da farsa. Assim como a estação, teu corpo também passa. Vê, em tuas mãos, o pó da farsa.
Serás, eternamente, solitário. Um ponto, de muitos separado. Enquanto pelas mãos, quanto sonhares, serás, em todos os lugares, apenas esse ponto abandonado.
Até perderes tudo, miserável, até sumir das mãos o pó da farsa, até sumir a mão e a própria farsa, serás apenas grão, na paisagem.
Serás apenas grão, na paisagem, até romper-se o grão da tua imagem e não restar nem grão, nem paisagem. E não restar sequer a tua imagem.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Ó, TODO DO MEU TODO

EIS-ME AQUI, EIS-ME AQUI, Ó MEU SEGREDO, Ó MINHA CONFIDÊNCIA!
EIS-ME AQUI, EIS-ME AQUI, Ó MEU FIM, Ó MEU SENTIDO!
CHAMO-TE. NÃO! ÉS TU QUE ME CHAMAS PARA TI!
COMO HAVERIA DE FALAR A TI, SE TU NÃO ME HOUVESSE FALADO A MIM?
Ó ESSÊNCIA DA ESSÊNCIA DA MINHA EXISTÊNCIA, Ó TERMO DO MEU DESÍGNIO!
TU QUE ME FAZES FALAR, Ó TU, MINHAS ANUNCIAÇÕES, TU MEUS PESTANEJARES!
Ó TODO DE MEU TODO, TODO DE TODA COISA, ENIGMA EQUÍVOCO; OBSCUREÇO O TODO DO TEU TODO AO QUERER EXPRESSAR-TE!
Ó TU, DE QUEM MEU ESPÍRITO ESTAVA SUSPENSO, JÁ AO MORRER DE ÊXTASE, AH! CONTINUA SENDO TUA PRENDA MINHA DESDITA!
Ó SUPREMO OBJETO QUE EU SOLICITO E ESPERO, Ó MEU HÓSPEDE, Ó ALENTO DE MEU ESPÍRITO, Ó MINHA VIDA NESTE MUNDO E NO OUTRO!
SEJA MEU CORAÇÃO TEU RESGATE! Ó MEU OUVIDO, Ó MINHA VISÃO!
POR QUE TANTA DEMORA, EM MEU RETIRO, TÃO DISTANTE?
AH! AINDA QUE PARA MEUS OLHOS TE ESCONDAS NO INVISÍVEL, MEU CORAÇÃO JÁ TE CONTEMPLA, DESDE MEU AFASTAMENTO, SIM! DESDE MEU EXÍLIO!

AL HALLAJ

Olhemos os olhos das crianças

Olhemos os olhos das crianças que eles encerram mistérios;
dentro de suas pupilas moram selvagens bons,
pairam neles as lendas das terras desconhecidas.
Olhemos os olhos das crianças;
quando com eles cruzamos nossos olhos,
há reconhecimentos súbitos
e reminiscências que revivem.
Que ausência de ouro e prata existe neles!
Que verdes potros relincham em suas colinas!
Que indiferença pelas arcas ricas!
Como se parecem com os olhos dos poetas!
Olhemos os olhos da crianças,
desprevenidos de crimes e borrascas,
inconscientes entre o Bem e o Mal
sempre transparentes como a água e o mel.
Olhemos os olhos das crianças,
com seus horizontes claros, claros,
capazes de deixar transparecer
o avô curvado e trêmulo,
o pai de sobrecasaca e a menina mãe.
Fitemos os olhos das crianças
como quem fita um écran
e vê desenrolar-se lá dentro
uma história familiar.
Olhemos os olhos das crianças
para repousar nestes céus sem pensamento
a angústia de procurar pátrias distantes
e as constelações que já morreram.

Jorge de Lima

sábado, 11 de outubro de 2008

Nasrudin

Volta e meia, Nasrudin atravessava a fronteira entre a Pérsia e a Grécia montado no lombo de um burro. Toda vez passava com dois cestos cheios de palha e voltava sem eles, arrastando-se a pé. Toda vez o guarda procurava por contrabando. Nunca encontrou.
"O que é que você transporta, Nasrudin?"
"Sou contrabandista."
Anos mais tarde, com uma aparência cada vez mais próspera, Nasrudin mudou-se para o Egito. Lá encontrou um daqueles guardas de fronteira.
"Diga-me, Mullá, agora que você está fora da jurisdição grega e persa, instalado por aqui nesta vida boa - o que é que você contrabandeava, que nunca conseguimos pegar?"
"Burros."

Para meu amado filho, que completa hoje quatorze anos!

A Guilherme Campagnacci Polidoro

brandura, sol da indolência,
estive em todos os castelos

o futuro é essa história
que não terei
a quem contar

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

A nau de mim

Movo moinhos de vento, alço altiplanuras, barco à deriva que ruma para nenhum lugar... A minha casa afastada, a minha casa distante, é um hierofante nas ágoras do cais. Eu, sem destino certo, miro o meu reflexo, sobre as águas do mar. E, na voragem da espuma, minha imagem se perde, para de novo se armar.
Em cada porto um aceno, de mãos suspensas no ar, que os corpos abandonaram, feito espectros, sós. São sombras da despedida, de quem levou-se na ida, e nunca mais voltará...

A voz original...



















persigo, da fala, a plena expressão
da sala nunca aberta, o corredor
que nos conduza ao Verbo sem autor
e que traduza as coisas do porão.

mas como seduzir a sedução
e como, sendo ovelha, ser pastor,
se a fala, como falso condutor,
tem muitas e nenhuma direção?

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Soneto de contrição


Eu te amo, Maria, te amo tanto
Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
Mais cresce na minha alma teu encanto.

Como a criança que vagueia o canto
Ante o mistério da amplidão suspensa
Meu coração é um vago de acalanto
Berçando versos de saudade imensa.

Não é maior o coração que a alma
Nem melhor a presença que a saudade
Só te amar é divino, e sentir calma...

E é uma calma tão feita de humildade
Que tão mais te soubesse pertencida
Menos seria eterno em tua vida.

Camões

Sete anos de pastor Jacó servia
Labão, pai de Raquel serrana bela,
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prêmio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la:
Porém o pai usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu a Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida,

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Indeciso

Às vezes meu desejo
é não notar que tudo passa
e que envelheço na medida que envelheço
Por vezes meu intento é evitar
que a busca de um espaço me enlouqueça
que todos descubram
que devo dinheiro aos inimigos
ou saibam que nunca tive namorada
Às vezes eu me sinto muito bobo
conservando os costumes de família
e comprando queijo na mesma padaria
Às vezes é o provável do poema
não fosse essa carência
que sinto ao dizer que sinto às vezes

Essa voz...

É meio que apear da vida, em pleno calçadão, e colocar a concha do ouvido ao rés do chão... do outro lado, Juiz de Fora, do outro lado, diametralmente oposto, que concha ou que hálito, que boca a desdizer, ouvindo, que ouvido a desescutar, falando?
Nessas entorces de ruptura, entre o andar e o pensamento, entre o olhar e a procura, entre quem fala e desescuta, nessas entorces que afetam o ato, que afetam o espaço que se enrijece, um outro ato se faz sem ser, como montagem de figuras em quadrinhos... que desalinho, belo, se avista, quando o olhar não o procura...
Apenas queda, no anomimato, o corpo, o plexo, o abraço, nesta calçada; pano de fundo para outra concha, outros ouvidos...

Titãs

Será inevitável?
Quero revolucionar
ISSO...
Torcer ao avesso,
tornar recomeço
o meio e o fim...

Isso, isso

O coração partido. Isso,
que desmorona comigo,
ergui com minhas mãos
e erguerei de novo
dos escombros da paixão.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Cena de bar

Moça areando a travessa
do meu peito oxidável,
nem de carne nem de aço.
Feito de sentimento.

Polir-se é ausentar-se
do processo
para que o reflexo
ultrapasse a imagem.

Flash

De mim eu tantas vezes tenho sido
aquele que, privado dos sentidos,
não sonha, nem vive no real.
Espectro de vida no umbral,
não grito nem calo nem prossigo:
avanço e contudo volto atrás.

Os dias se parecem sempre iguais
se presos eu os guardo no bornal
e tento ocultá-los de sua luz.
Não posso fazer sombra sobre o sol.
Se olvido, porém, que em vão me imponho,
se partem as amarras do que penso

e vejo-me além do pensamento:
me torno, num segundo, num momento,
o mais profundo ser, essencial.
É pena que no instante que se segue
desate-se a memória, que se perde

e volte eu a sonhar que sou real.

Tudo passa

Se triste estou aí invento mil paisagens de alumbramento: tosquio ovelhas do meu rebanho, antes que a mão, imersa em sonho, tosquie outras, noutro lugar. Espio a pia, donde goteja a gota efêmera que cai e finda na terra funda da qual se esvai... Uma aranha, de longas pernas (será que ela também sonha?) consegue, enfim, caçar o inseto (será que ele também sofre?). Jato de areia dessas paredes desenha caras, carantonhas, formas medonhas ou ordinárias, conforme a luz. E tantos quadros, se seguem a outros, e tantas coisas se misturando, que me esqueço que no começo só inventava porque entristeço de vez em quando...

O amor passou por mim

O amor passou por mim
em sua liteira de nuvem:
desejo de querubim,
projeto de herói e de mito
nos rituais de passagem.

O amor passou por aqui
levando, em sua voragem,
pedaços da paisagem
e muitos pedaços de mim.

O amor seguiu por ali,
seguiu para além de si
e eu, perseguindo a imagem,
pelo caminho fiquei.
Ficaram também, aqui, reis,
vassalos, nobres e bêbados.
Ficaram poetas, aedos
e noivas abandonadas.
O amante ficou sem amada
e todos carentes do amor.
O amor seguiu e ficou,
tocou, e não foi tocado.

O amor se foi, por inteiro,
atravessando janeiros:
cravando espadas de afeto
no peito de homens perplexos,
dobrando-lhes a cerviz.

Dobrou a dor nos joelhos
quando, abraçado à liteira,
não tive senão o reflexo
das incrustações de rubis.
O amor não estava ali.

Rasgou minhas vestes e veias
mortificou-me em areias
e transformou-me em deserto.
Viajo sem rumo certo
e quando o sinto mais perto,
sei que está longe de mim.

O amor passou por aqui
em sua liteira de sonho
e quanto mais o acompanho
mais perdido me sinto
sorvendo desse absinto
não sei quem sou, ou quem fui.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Sidharta

A balsa segue, lentamente. Os braços do balseiro e os remos parecem um mecanismo único, tão familiarizados estão ao afã. O olhar do condutor se perde no horizonte, como que sondando o rastro da margem oposta.
Pobre balseiro... Qual será sua fortuna? Cortar, repetidas vezes, a corrente do rio, conduzindo viajantes de uma à outra margem?
Talvez sua fortuna esteja no esforço de imprimir movimento aos remos e fazer com que a balsa se desloque.
Rio de tantas margens, tantas afluências, onde o ancoradouro definitivo? O que é definitivo?
Os olhos do balseiro miram o horizonte, como que alheios ao resto do corpo. O que procuram seus olhos?
Alcançamos uma, de muitas orlas. Ao preparar-me para descer, não consigo conter o ímpeto da pergunta: - o que procuram teus olhos, velho balseiro?
E o ancião volve a mim o olhar profundo, murmurando:
- Não sei.

Stones of wisdom



Bela música de Gandalf.

Majun volta para casa

Estou enamorado, Pai.
Sou este que retorna, em trapos.
No longínquo instante em que rasguei o peito, eu tentei enchê-lo com as dádivas do mundo.
Quando, há muito tempo, me apoiei na janela do vazio, saí, colhendo nada do caminho.
Deixei-te pelas coisas, pai, e volto, sem saber de mim.
Um dia, estando com outros viajantes, entrei na roda que dançava.
Festejavam bodas da colheita. Pude perceber, na luz estreita, os olhos que me escravizaram.
Nunca mais dos meus se apagaram.
E enquanto cantava, inebriado, o poeta, à musa pretendida, o meu coração também cantava, minh’alma dançava enlouquecida. Neste instante, ao centro, ó Deus, miragem? Eis, assoma a vida da minha vida! Ao tempo que ria eu pranteava, pois no seu olhar eu me encontrava, a face encoberta por tiara e guizos.
Quanto mais a via mais a amava, tanto mais me dava mais perdia o meu próprio eixo, em rodopios.
Ó amor sem tino, desalento, sendo o mel mais doce mais maltrata, e de mim se afasta, se aproximo.
Transitei em torno de mim mesmo. E saí, sem rumo, do roteiro, a buscar, por fora, o que está dentro.
Mendiguei nas ruas do inferno; fui pedinte, algoz e prisioneiro. Fui sultão, filósofo, bandido. Em nenhuma posição venci, vencido. O que hei de ter, se está perdido o bem precioso que não tenho?
O menor dos homens eu me sinto, estando no trono ou no jazigo. De que vale o aroma, se não traz a flor consigo?
Estou enamorado, pai. E a ti retorno, maltrapilho. Tudo que não trago não foi tido. De algum modo, sei que está contigo, chave, reino e todo o tesouro. Sei também que, sob guizos, hei de ter, do amor enlouquecido, o amor de Laila aqui, comigo.

Ibn Arabi


O meu coração abriu-se a todas as formas: é uma pastagem para gazelas, um claustro para monges cristãos, um templo de ídolos, a Caaba do peregrino, a tábuas da Tora e o Alcorão. Pratico a religião do amor; qualquer que seja a direção em que as caravanas avancem, a religião do amor será sempre o meu credo e a minha fé.

I am missing you

Nossa casa

Um dia descemos do estribo e parte o trem. O bonde se confunde com a neblina. O carro vira a curva além do olhar.
À noite aguardamos, na estação, um carro, um bonde, um vagão, mudança de roteiro e de lugar.
O carro segue seu traçado. O trem, o bonde, o vagão. Descemos do estribo e nos aguardam, ou aguardamos nós, na estação.
A casa é uma idéia vaga. A casa é uma idéia parca: concreto, tijolos, corrimão. A casa é para onde se volta a seta do nosso coração.
Tivemos tantas casas, não importa se a elas retornamos, noutro chão. Porque a nossa casa é onde estamos. E mesmo que desçamos do estribo, e mesmo que mudemos de estação, e mesmo que trens partam, sem destino, e mesmo que haja bondes na neblina, e mesmo que o carro vire a curva, e mesmo que se percam do olhar, estribos haverá para subir, e outros cursos, rotas de viagem. E ainda que o vagão, em movimento, ainda que o carro, avançando, ainda que no trem, velocidade, se cumpre a nossa viagem além do carro, do vagão, além do bonde, da estação, além do tempo, do lugar, porque a nossa casa é onde estamos.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A teia do destino

Perambulava, certa ocasião, ao sabor dos ventos, quando, a meus pés, deparei com o que me pareceu parte de uma antiga e amarelecida publicação. Chamou-me a atenção o formato dos caracteres impressos, diferente do alfabeto que usamos para nos comunicar. Um velho amigo, viajante Ananda Marga, identificou o idioma como sendo o sânscrito e traduziu o conteúdo:

Kavyakanta, aquele cuja fala é poesia, nunca compareceu às convenções de Pânditas para receber os lauréis e homenagens de que seus versos foram e são alvo, em nenhuma ocasião. Não se sabe onde mora, o que faz, nem mesmo seu verdadeiro nome.
Sua indiferença quanto a se fazer presente aos eventos gerou, em torno da sua figura, o culto do mito, como se o mesmo, de outro modo, jamais houvesse existido.

Carta de Miguel sobre Kavyakanta

Numa manhã de primavera encontrei, na caixa de correio, um envelope, sem a identificação do remetente. O texto da carta, brevíssimo, dizia:

Recebereis, em cálices, da bebida vital que revivifica o corpo, serena a alma e ilumina a consciência. Bebei!
Nestes cálices está a Centelha do Prístino Princípio da Vida, para dar sabor e aroma à Essência Luminosa que quer se expandir em vós!

“Miguel”

3ª MENSAGEM DE KAVYAKANTA


Cavalgava entre álamos do bosque, numa belíssima manhã. Ao aproximar-me do Lago Verde apeei e, enquanto a montaria se dessedentava, pude contemplar a paisagem...
Árvores gigantescas e frondosas perfilavam pelo caminho, como se pretendessem perfurar o céu. Na planície distante, a última linha entre a terra e o firmamento parecia bailar com o horizonte. A grama e o chão próximos palpitavam de vida. Sons de todos os tons desciam dos galhos elevados e vinham de muitas direções. Estranhas e diminutas criaturinhas rastejavam pelo solo e organizados exércitos de formigas trafegavam incansavelmente. Ao fundo da lagoa uma gruta instigava o instinto aventureiro. Acerquei-me dela, com cuidado, e avancei alguns metros. A luz, refletida pela água, permitiu-me vislumbrar, no teto da gruta, centenas de estalactites. Quadro magistral!
Surgida das profundezas da caverna, uma coruja de cor opala se aproximou, e disse:

- Eu sou teu propósito. Sou aquele que te guia. E afirmo: semeia, por onde fores, esse propósito.
Segue a clareira do sonho porque, em Mim, teus sonhos serão reais.
Eu sou a intenção; tu, o agente. Sou o leito; tu, a correnteza.
Não te importe a sombra quando tens a luz. Olha-Me além dos olhos. Estes olhos perdidos no crepúsculo, contemplando, sequiosos, o espaço fora do espaço.
O amor dança com tua razão... Por isso estás perdido, completamente apaixonado, completamente embriagado desse vinho. Quem o prova uma única vez transforma-se num mendigo. Nenhum poder ou riqueza o trarão de volta. Seu corpo errará pelos bazares, como um jarro sem flores. Sua alma permanecerá aos pés da vinha, ainda que secas estejam todas as uvas. Quem já sentiu essa bólide fulminar seu coração perde a razão e os sentidos! Vagueia feito uma marionete sem comando. Aquele que aproximar o ouvido da sua boca nada ouvirá, além da voz torturada de Majnum, clamando por Laila!
Vem, amante destronado, vem, carrasco condenado a pena eterna, vem, senhor tornado escravo, juntar-te à caravana dos perdidos!

domingo, 5 de outubro de 2008

Mais Rumi



Vem,
Te direi em segredo
Aonde leva esta dança.
Vê como as partículas do ar
E os grãos de areia do deserto
Giram desnorteados.
Cada átomo
Feliz ou miserável,
Gira apaixonado
Em torno do sol.


Ninguém fala para si mesmo em voz alta.
Já que todos somos um,
falemos desse outro modo.

Os pés e as mãos conhecem o desejo da alma
Fechemos pois a boca e conversemos através da alma
Só a alma conhece o destino de tudo, passo a passo.

Vem, se te interessas, posso mostrar-te.


Desde que chegaste ao mundo do ser,
uma escada foi posta diante de ti, para que escapasses.
Primeiro, foste mineral;
depois, te tornaste planta,
e mais tarde, animal.
Como pode isto ser segredo para ti?

Finalmente, foste feito homem,
com conhecimento, razão e fé.
Contempla teu corpo - um punhado de pó -
vê quão perfeito se tornou!
Quando tiveres cumprido tua jornada,
decerto hás de regressar como anjo;
depois disso, terás terminado de vez com a terra,
e tua estação há de ser o céu.


Mawlānā Jalāl-ad-Dīn Muhammad Rūmī (مولانا جلال الدین محمد رومی), também conhecido como Mawlānā Jalāl-ad-Dīn Muhammad Balkhī (محمد بلخى), ou ainda apenas Rumi, (30 de setembro de 1207–17 de Dezembro de 1273), foi um poeta, jurista e teólogo muçulmano persa[1] do século XIII. Seu nome significa literalmente "Majestade da Religião"; Jalal significa "majestade" e Din significa "religião"[2]. Rumi é, também, um nome descritivo cujo significado é "o romano", pois ele viveu grande parte da sua vida na Anatólia, que era parte do Império Bizantino dois séculos antes. [3]

Ele nasceu em Balkh (no hoje Afeganistão, então parte da Pérsia), a cidade natal da família de seu pai. Esta cidade estava nesta época sob a esfera de influência da região de Khorasan e era parte do Império Khwarezmio.

Ele viveu a maior parte de sua vida sob o Sultanato de Rum, onde produziu a maior parte de seus trabalhos[4] e morreu em 1273 CE. Foi enterrado em Konya e seu túmulo tornou-se um lugar de peregrinação. Após sua morte, seus seguidores e seu filho Sultan Walad fundaram a Ordem Sufi Mawlawīyah, também conhecida como ordem dos Dervishes girantes, famosos por sua dança Sufi conhecida como cerimônia sema.

Para ser

Tanto tempo gastei
guardando para meu Rei
as jóias da devoção
que a arca, abarrotada,
só fez mostrar-me que nada,
nada a tudo é igual,
quando as gemas mais raras
não passam de pedras falsas
perante os raios do sol.

Estar no mundo sem ser... do mundo


Mundo redoma de vidro
de posseiros em litígio.
Fortuna dos despossuídos.

Boa sorte quem tem
não a compra no armazém
nem é quinhão de bandido.

Estar no mundo sem ser
do mundo é ter
o universo aos seus pés

sem chafurdá-los na lama
nem sujar as mãos do sangue
da inocência e brandura

quando o valor que se apura
muito além do que se tem
está no Ser, que do mundo

nada mais leva que tudo
que o vasto mundo não tem.

Rumi


"Se pensar em um bem-amado deste mundo traz tanta força e benefícios, o que há de surpreendente no fato de o Amigo Divino dar força a Seu amigo tanto na presença quanto na ausência? Isso não é imaginação; é a alma de todas as verdades e não se pode dizer que é imaginação.

O mundo está fundado na imaginação. Tu pensas que este mundo é real porque o vês e o tocas, chamas todas as realidades profundas (mani), às quais este mundo está subordinado, de imaginação. É o contrário (que é correto). A imaginação é este mundo e a realidade pode criar cem mundos parecidos, que apodrecem, deterioram-se e se destroem; ela pode ainda criar um mundo melhor que não envelhece, que está longe de ser novo ou velho; tem a qualidade de ser velho ou novo o que decorre disso. Aquele que criou essas duas coisas está distante e acima delas. [O Rei do Amor oferece dois mil raios de luz a cada momento. D'Ele não desejo ver outra coisa senão Sua Beleza.] Um arquiteto projeta em seu pensamento uma casa e cria imagens: ele imagina seu comprimento, sua largura, o piso, o pátio. Essas imagens não são a imaginação: a realidade sai dessa imaginação e depende dela. O homem que não é arquiteto e que elabora formas e imagens em pensamento, usa a imaginação; normalmente, as pessoas dizem a esse homem que não é arquiteto e não conhece esta arte: "Estás imaginando coisas".
A meus filhos


pai, o que é tarde?
unhas roídas para o sem resposta

mais difícil é olhar nos olhos
responder: — deus te abençoe

(às vezes
corro ao quarto
os abraço
sem tocá-los
e cresço
na escuridão
como se a conhecesse)

queria dar-lhes
a opção do passo:
cuidado com a pedra
salte esse buraco
repartir
o tenho medo
quero colo

mas este cigarro que queima
esta noite que arde
sugerem que eu diga
vamos dormir, filhos, é tarde

Antípoda


Antípoda

agora as pessoas que fui se juntam
se separam, que nunca se juntaram.
porque soltas, jamais se separaram
e unidas, não são coisas que se ajuntam.
umas caladas, que outras se besuntam
do aroma das bocas que calaram:
tudo disseram porque não falaram
porque não falaram ó, disseram tudo.
e pessoas tantas todas quero ser
que dizendo muito muito a dizer
dizem outraquelas o que não disseram.
quero quero todas e nenhuma quero:
estes seres que de noite recupero
capturo pela sua negação.

Começo, recomeçando...

Sentir, em si mesmo, nos sis, a
sensação recorrente, déjà vu...